domingo, 5 de outubro de 2008
SEVERO D'ACELINO EM QUESTÃO
SEVERO D'ACELINO E A PRODUÇÃO TEXTUAL AFRO -BRASILEIRA
Profª. Mestre Rosemere Ferreira da Silva i
Universidade Federal da Bahia
Centro de Estudos Afro-Orientais
Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos
e-mail: roserosefr2000@yahoo.com.br
Resumo:
O artigo em questão procura discutir, sob o ponto de vista de formação da literatura afro -brasileira, a
produção cultural e textual do intelectual Severo D’Acelino na contemporaneidade. De que maneira,
os textos de Severo podem ser lidos e relacionados às discussões que envolvem a participação de
afro-descendentes na sociedade brasileira? Parte, do perfil biográfico do escritor, foi traçada para que
o leitor conheça a sua trajetória de formação intelectual e de intervenções nas atividades culturais em
Sergipe. A discussão sobre as atuações do intelectual hoje procura levantar questionamentos,
principalmente, sobre: Que papel o intelectual assume na sociedade contemporânea como articulador
da cultura? Quais são os dilemas do intelectual na sua política de cultura em relação ao poder
hegemônico no Brasil? Uma leitura crítica da poética de Severo D’Acelino busca relações crítico -
literárias com outros escritores da literatura afro -brasileira. E a publicação do jornal Identidades é
destacada, com o objetivo de problematizar as discussões em torno das questões sociais, culturais e
políticas que envolvem a afro-descendência no Estado.
Palavras-Chave: Severo D´Acelino, Afro-Descendência; Literatura Afro-Brasileira; Identidade
Intelectual.
A produção cultural do escritor Severo D'Acelino em Sergipe está voltada para a discussão da
afro-descendência como uma das principais formas de questionamento, na sociedade
contemporânea, que envolve a participação direta de afro -descendentes nos mais diferentes setores
sociais do Estado. A poesia escrita por D'Acelino bem como os artigos publicados e os projetos
educacionais coordenados pelo escritor refletem uma preocupação constante em educar os
sergipanos na direção de uma cultura produzida para marcar a importância da literatura afro -brasileira
como um lugar de expressão significativo que problematiza as hierarquias sociais construídas, as
relações de poder disseminadas socialmente, a formação de identidades, o combate ao precon ceito e
a discriminação racial e de gênero e ainda, a valorização da auto -estima como principal ponto de
partida na luta contra a formulação de estereótipos.
O trabalho de Severo D'Acelino começa em fins da década de 60 do século XX, mais
precisamente em 68, no Estado de Sergipe e na Bahia com o seu envolvimento na militância do
Movimento Negro e em atividades teatrais, o que acabou rendendo -lhe participações em dois filmes:
Chico Rei e Espelho D'Água e no seriado Teresa Batista Suas atividades culturais sempre estiveram
ligadas à Casa de Cultura Afro-Sergipana, Instituição comprometida com as representações culturais
e sociais da afro-descendência no Estado. Durante quase 40 anos de trabalho em torno das questões
sociais, políticas e educacionais direcion adas à causa do negro, Severo publicou em 2002, apenas
um livro de poemas, Panáfrica África Iya N'la e editou de 2001 a 2002 o jornal Identidades,
considerado um dos principais veículos de comunicação pensado para incentivar o intercâmbio de
idéias entre a comunidade e o poder público em Sergipe.
Revista África e Africanidades - Ano I - n. 1 – maio, 2008 - ISSN 1983-2354
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O jornal tratava de informar a população sobre um conteúdo, cuja abordagem não
observamos nas edições dos jornais convencionais. A leitura da afro -descendência em Sergipe,
associada ao cenário das discussões nacio nais sobre as populações minoritárias, era mediada pelo
trabalho de pesquisadores sergipanos e de outros estados do país. O Identidades constituía, desta
forma, um fórum riquíssimo de debates entre intelectuais, população e alguns segmentos de poder no
Estado. Em 2004, Severo D'Acelino coordenou o projeto “João Mulungu vai às Escolas", com auxílio
da Lei 10.639, destinado a discutir nas escolas públicas a inserção do afro -descendente na sociedade
sergipana, através do exercício da cidadania de uma comunidad e, que busca uma articulação de
cultura negra fundamentada na discussão da questão étnico -racial, como prioritária no que
entendemos como cultura afro-brasileira. Atualmente Severo se dedica a escrever o seu segundo
livro de poemas chamado Quelóide.
Pelas pesquisas realizadas em arquivos, através de levantamento de fontes bibliográficas,
entrevistas, leituras, empreitadas em bibliotecas, livrarias e principalmente discussões em torno da
questão da formação de identidades do afro -descendente em Sergipe, tenho convicção de que só
podemos nos referir a uma produção literária, intelectual e cultural voltada para uma inserção e um
diálogo com a formação da literatura afro -brasileira em Sergipe, a partir do trabalho realizado por
Severo D'Acelino.
No estudo realizado da historiografia da literatura sergipana, escrita por Jackson da Silva
Limaii, há registro de poetas que contribuíram literariamente apenas por usarem a temática do negro
como um elemento de referência. Estes textos foram escritos no século XIX e a for ma de abordagem
do negro geralmente se debruçava sobre o lamento, o pranto, a lamúria da escravidão, a escravidão
como castigo, a saudade dos negros escravizados de sua terra natal, a exploração da sexualidade da
negra escravizada, o ímpeto pela defesa da abolição, marcados à distância pela observação de um
olhar do poeta deste século praticamente externo a toda essa problemática.
Os autores sergipanos citados por Jackson da Silva Lima são: Moniz de Souza, Constantino
Gomes, Pedro Calasans, Bittencourt Samp aio, Oliveira Campos, Tobias Barreto, Silvio Romero,
Severino Cardoso, Jason Valadão, Alves Machado, Antônio Diniz Barreto e Prado Sampaio. Os
textos desses poetas ou estão compilados na História da Literatura Sergipana ou em Os Palmares
Zumbi & Outros textos sobre a escravidão. O primeiro publicado em dois volumes em 1986 e o
segundo em 1995. A história da literatura sergipana não abrange textos contemporâneos. Ou seja,
falta a esta história uma leitura mais significativa sobre o modo de representação do a frodescendente
sob o ponto de vista de formação de uma identidade cultural.
Não posso falar em literatura afro-brasileira em Sergipe sem antes voltar a estes escritores
para mostrar que não houve, ainda que superficialmente, uma continuidade de escrita h istoriográfica
sobre um contexto de abordagem que envolva o negro/ o afro -descendente. Observo que existe um
espaço vazio entre os textos desses escritores do século XIX e a literatura afro -brasileira que veio a
fortalecer-se no século XX. Não considero que os textos dos autores citados satisfaçam um estudo
mais representativo da "presença" do negro na literatura, como muitos críticos denominam. São
escritos concentrados num contexto político, histórico, social e cultural totalmente de desvantagens à
leitura do afro-descendente como parte de uma identidade nacional.
Esses textos são fundamentais para a historiografia literária, mas não atendem a leitura de
representações literárias voltadas para o estudo da literatura como produção cultural realizada em
Sergipe, cuja abordagem esteja destinada a discutir questões relativas à preservação da cultura
negra no Estado e, ainda a levantar problemas sobre a participação mais direta do afro -descendente
no processo sócio-cultural, político e econômico, de modo que as diferenças étnico-raciais sejam
percebidas como necessárias ao reconhecimento de uma sociedade multicultural.
Já no século XX, identifiquei na literatura sergipana alguns poetas que continuaram a escrever
sobre a temática do negro, a exemplo: João Silva F ranco (o João Sapateiro) e Santo Souza. A
produção literária deles, embora mais crítica e mais de acordo com os questionamentos sociais
trazidos pelas representações contemporâneas de afro -descendentes, ainda não abarcam uma
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leitura que discuta as relações étnico-raciais dentro do processo de formulação da identidade afro -
brasileira em Sergipe.
Para falarmos de literatura afro-brasileira, de suas articulações de sentido com a literatura
brasileira, da maneira como alguns conceitos e determinadas leituras fo ram ressignificadas neste
universo de construções e desconstruções da imagem do afro -brasileiro na sociedade
contemporânea, é necessário nomearmos as produções culturais e literárias que buscaram na própria
polêmica sobre a existência de uma literatura neg ra dar visibilidade cultural e política a uma
comunidade, até então, supostamente representada por alguns discursos legitimados socialmente. A
forma como esses discursos eram “autorizados" pelo poder de uma hegemonia cultural branca, fixada
em bases ocidentais, excluía toda e qualquer tentativa de manifestações culturais e literárias que
tendessem a buscar na nossa herança africana elementos da história e da memória de afro -
descendentes ou ainda a trabalhar a própria representação do negro a partir de um co ntexto de
valorização de suas contribuições à nação brasileira.
Da década de 70 do século XX para cá, com a abertura da democracia no Brasil e
conseqüentemente com os olhos voltados para um contexto político e cultural mais suscetível a
questionamentos, os intelectuais afro-brasileiros buscam no país um espaço de expressão voltado
para uma representação de valorização da cultura negra nas discussões sobre cultura, expressões
artísticas, comunicação e formação de identidades. A dinâmica das trocas culturais iii baseadas na
negociação dos contatos culturais entre negros, brancos e índios, traduziriam alterações significativas
no processo civilizatório ocidental.
A proposta da intelectualidade negra era de pensar a articulação da cultura negra, na sua
forma de comunicação com a literatura, a partir da revisão historiográfica do ser negro no Brasil.
Estabelecer uma problematização mais intensa da participação do afro -descendente na sociedade
brasileira dependia da releitura e da desconstrução das antigas repre sentações destes sujeitos
sociais, construídas sob uma forma de poder hegemônico, que sempre excluiu as expressões
minoritárias inviabilizando o reconhecimento social, político e cultural da diferença.
Ao assumir a condição de um "enunciador", o escritor afro-descendente desestabilizou as
bases da tradição literária brasileira, acostumada a ver o negro num lugar marcado pela condição
inferior, subalterna a ele atribuída. A condição de negro no discurso da enunciação, fez com que o
escritor afro-descendente trouxesse para o campo de análise teórica um discurso que problematiza
os anseios e angústias de uma coletividade. E que leva o sentimento coletivo a reconhecer a sua total
e plena condição de assumir papéis sociais mais definidores do ser negro na socied ade
contemporânea, completamente diferente daqueles "naturalizados" pelo discurso colonial.
Foi possível abrir, através da proposta diferenciada dos estudos sobre cultura, mais
especificamente a dos Estudos Culturais, um espaço de diálogo entre o que já c onsideramos
literatura afro-brasileira e as produções culturais levantadas mais contemporaneamente em estados
distintos do Brasil. Isso reforça a idéia de que a cultura pode e deve ser entendida a partir das
tensões criadas pelo conhecimento, nas suas múlt iplas influências ideológicas com o saber cultural
em processo, como afirma Florentina da Silva Souza:
Efetivam-se trânsitos e intercâmbios entre os conceitos construídos pelos
escritores negros (na verdade pelos movimentos negros) e aqueles gerados
pelos estudos e reflexões acadêmicas. Trocas marcadas pelo fato de, mais
intensamente a partir dos fins da década de oitenta, crescer o número de afro -
descendentes que investem nas pesquisas e estudos sobre cultura, tradição e
história afro-brasileira. Sem assumir qualquer posição essencialista, acredito que
o fato de disputarmos posição de sujeitos e objetos dos estudos introduz uma
outra perspectiva de análise da questão racial no universo acadêmico e
enriquece a produção de reflexões e estudos sobre a questão racial no Brasil.
Por outro lado, penso também que a proliferação de entidades e grupos negros
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no País nas últimas décadas evidentemente que aliada a outros fatores, muito
contribuiu para a inserção do tema na agenda acadêmica e nas discussões
políticas.iv
Considero literatura afro-brasileira toda produção cultural voltada para a afirmação de uma
identidade negra de inclusão, questionamentos políticos, auto -estima, em constante tensão com o
legado cultural da literatura instituída sempre em busca de ampli ação e renovação de seu campo de
saber através dos diálogos com escritores, intelectuais que pensam suas atividades culturais como
forma constante de preservação cultural afro -brasileira e também de problematização das forças de
poder que são exercidas na marcação de políticas que efetivam a diferença. A releitura das
manifestações populares brasileiras se torna fundamental para a revisão do conceito de literário.
É neste contexto que o trabalho do intelectual orgânico v Severo D'Acelino começa a ser
desenvolvido em Sergipe com o propósito, segundo ele, de dar visibilidade à cultura negra. Seu
trabalho concentra ações diversificadas em torno da afro -descendência. Diferente de outros
escritores de sua geração no Estado, Severo se projeta para um campo de saber que movimenta na
contemporaneidade não só escritas sobre a temática do negro, mas, sobretudo a discussão pela
participação direta no âmbito das políticas que inserem afro -descendentes no campo cultural, político
e social brasileiro.
Sergipe tem, de acordo com as informações do senso de 2003 realizado pelo IBGE vi, um
percentual de 68,6 % de afro-descendentes. O município brasileiro com o maior contingente
populacional de afro-descendentes é Nossa Senhora das Dores com 98,7% vii, sob o ponto de vista
proporcional. As cidades de Monte Alegre, 93,7%, Indiaroba, 89,2% e Pinhão, 89,2% também reúnem
uma população significativa neste sentido. No município de Porto da Folha a população "sarará" é
interpretada como branca, mesmo apresentando características afro -brasileiras. Gilberto Gil na letra
da música Sarará Miolo define o que vem a ser sarará: “como doença de branco, de querer cabelo
liso, já tendo cabelo louro, cabelo duro é preciso, que é pra ser você crioulo". viii O cabelo duro, na
letra da música, é interpretado como uma das marcas identitárias do afro -brasileiro, ao passo que o
cabelo liso seria a reprodução de uma marca que não é a sua e, sim aquela atribuída por um padrão
estabelecido de leitura estética e social branca. Na verdade, pelo percentual total de afro -
descendentes no estado de Sergipe, percebemos claramente que as cidades do interior influenciam
na leitura da capital como predominantemente branca.
Incoerente pensar que Aracaju seja uma capital branca. O percentual de brancos em Sergipe
é de 27,4%, de pretos, 3,8% e de cor amarela ou indígena é de 0,2%. Se somarmos os números de
pardos, considerados aqui afro-descendentes mais o percentual de pretos, já constatado pelo IBGE,
teríamos um total geral de 71,4% de afro -descendentes. Portanto, não deveria hav er motivos para
que a população de afro-descendentes não seja percebida como um contingente populacional
significativo na leitura de afro-descendência no Estado. Acho que a problemática sobre as relações
raciais em Sergipe tem suas raízes plantadas princip almente nesta leitura mal feita. Os índices são
claros e não deixam dúvidas sobre a caracterização da população quanto à cor. A política
governamental do Estado não é uma política voltada para os indicadores sociais desta população. O
discurso político em Sergipe fortalece uma identidade branca, momentânea e que não contribui para
que as diferenças raciais sejam seriamente pensadas.
O afro-descendente em Sergipe incorpora mais a idéia de ser branco do que a idéia de não -
branco. Mesmo a população do interior do Estado é levada pelas condições de inferioridade racial,
formação de estereótipos e invisibilidade à política de ações afirmativas, a pensar que um tom de
pele mais claro, ou o cabelo forçosamente liso, embora com características fenotípicas negras, se ja
branca.
O discurso da brancura é uma forma de esconder os problemas étnico -raciais, para que eles
não venham à tona como uma problematização que possa repercutir no que entendemos como
diversidade cultural e identidades múltiplas na formação étnica nac ional. As pessoas são levadas a
mascarar uma idéia de "branqueamento" para tentar com isso evitar a exclusão.
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Penso a identidade do afro-descendente em Sergipe como um conceito que opera, como afirma
Stuart Hallix, "sob rasura". A identidade cultural na co ntemporaneidade é estudada como identidades.
A pluralidade retira do conceito a predominância de uma identidade única no reconhecimento da
diferença. O sujeito se percebe socialmente pelo conjunto de identidades que possui e pela não
fixidez da construção do conceito de identidade sob uma historicidade em processo.As identidades do
afro-descendente na contemporaneidade não podem ser entendidas sem que haja recorrência ao seu
passado histórico, como discute Stuart Hall:
As identidades parecem invocar uma or igem que residiria em passado histórico
com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a
ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da
linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo
no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões "quem nós somos"
ou "de onde viemos", mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos
tornar", "como nós temos sido representados" e "como essa representação afeta
a forma como nós podemos representar a nós próprios." x
Não se trata de atribuir culpas pela lentidão do debate racial em Sergipe, apenas pretendo
dizer que a representação do afro-descendente deve ser reavaliada e que de uma forma muito clara e
objetiva políticas devem ser implementadas para resgatar um pouco da auto -estima e da capacidade
de intervenção social do afro-descendente como sujeito que se pensa como tal. Por isso, o nome de
Severo D’Acelino e seu trabalho desenvolvido tornam -se importante para o Estado.
Severo D'Acelino é o intelectual em Sergipe que contemporaneamente vem trabalhando com
questões relacionadas com a formação de identidades, com o combate aos estereótipos, usados na
caracterização da comunidade afro-descendente e denunciando textualmente, seja a través de sua
poesia ou de artigos, a necessidade de inclusão social desta população, com as atividades
direcionadas a projetos de uma pedagogia de educação voltada para a reflexão e para o
conhecimento de conteúdos específicos da cultura negra nos municíp ios.
Os textos de Severo D'Acelino podem ser lidos como uma produção da literatura afro -
brasileira porque seu conteúdo literário discute a problemática do ser negro no Brasil. O sujeito negro
é colocado em primeiro plano. Neste sentido, falar do cotidiano desta comunidade acaba sendo o fio
condutor que direciona a organização de sua escrita, objetivando uma expressão mais definida, do
entender-se negro no nosso país. As experiências vivenciadas como negro estão traduzidas em cada
linha de sua poesia. Experiências estas que no passado foram menosprezadas por uma literatura
instituída que sempre buscou excluir o afro dos afro -brasileiros. Não estamos tratando aqui de uma
temática, como já estamos cansados de ouvir. Estamos ampliando nossos conhecimentos, nosso s
saberes de uma maneira geral para tratar de uma literatura afro -brasileira. De uma forma de escrever
que procura se despir dos moldes ortodoxos da nossa língua portuguesa. A qualidade literária da
literatura afro-brasileira não está nas formas rebuscadas de escritas, nas classificações,
conceituações e etc, ela está concentrada indiscutivelmente na experiência poética, artística, cultural
e política de saberes que representam o qualificativo afro de afro -descendentes e de afrodescendência
no Brasil.
No início do livro Panáfrica África Iya N'la Severo D'Acelino cria uma certa expectativa em
contar uma história de afro-descendência fragmentada pela dispersão de informações que remetam a
construção de uma trajetória de ascendência africana. Mesmo sem a recor rência aos documentos, a
história merece ser contada e remontada com base nos relatos e tradições da ancestralidade africana
que vive, embora modificada na diáspora pela aproximação com a cultura ocidental, para que o
passado possa ser reinventado no prese nte, através de uma representação literária que assume a
história da cultura afro-brasileira como um legado de informações que fortalece a identidade afro -
brasileira.
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Na primeira parte do livro, que corresponde ao primeiro manifesto, o sentido de “Panáfri ca" é
de resistência cultural e política. A resistência da cultura afro -brasileira conseguiu manter as tradições
africanas ressignificadas nos rituais do candomblé, nos enredos das escolas de samba e na forma de
viver dos quilombolas. "Panáfrica" correspon de à preservação de uma memória pronta a ser ativada
na reconstrução do arquivo cultural e humano, no qual as expectativas do grupo étnico -racial sejam
usadas a repercutir uma idéia de cultura voltada para a visibilidade à diferença.
O poema que abre o primeiro manifesto é "Rito de abertura, saudação a Exu". O poeta
escolhe iniciar suas escritas com este texto, talvez porque de acordo com a tradição do candomblé no
Brasil o Orixá sempre convocado à abertura dos trabalhos é Exu. Metaforicamente, o Orixá tem a
função de abrir toda reflexão de "Panáfrica", e como mensageiro indicar o caminho que os textos
poéticos irão percorrer na sua forma de abordagem da cultura afro -brasileira em Sergipe.
(...)
O que sempre segue
Na frente e quem primeiro
É servido, Saravá
Leva meus rogos e preces
Ao meu Orixá.
Minhas preces em cantos
E prantos do meu povo
Diasporizando, nesta revisitação
A memória ancestral
Para que nosso pranto e cantos
Sejam a partir de agora
Canções de regozijo pela revisitação
Do meu axéxi
(...)
Recorrer à figura de Exu é comum aos escritores afro -brasileiros para explicar na tradição
afro-brasileira a presença do Orixá como metáfora de atividade crítica da interpretação. Leda Maria
Martins, em A Cena em Sombras, ao explicar o código da duplicidade que instaura o jogo da
aparência e da representação, escolhe Exu como um "operador semântico de alteridade africana na
sua interseção cultural nos Novos Mundos". Exu, na leitura de Leda, "é o princípio dinâmico de
comunicação e interpretação que se configura como elemento mediador de sentido". xii
Já Henry Louis Gatesxiii associa o Macaco Significador do discurso a Exu, figura segundo
Gates, trapaceira na mitologia ioruba. As figuras trapaceiras são "mediadoras" na leitura do autor.
Assim como para a maioria dos esc ritores afro-brasileiros Exu domina o campo das trapaças, das
ambigüidades, da inversão, do jogo discursivo, sempre brincando com as palavras e criando
imagens, muitas vezes, irônicas do que repete e inverte.
"Aquele que segue na frente e em primeiro lugar ", assim Exu é definido por D'Acelino. O que
segue primeiro é, em consonância com o discurso dos autores citados, o dono da notícia, da
comunicação direta do ato de comunicar na representação do significado de "Panáfrica".
A poética de Severo D'Acelino é o esboço de uma literatura afro-brasileira escrita para ser
conhecida como o início de uma “caligrafia" que pensa o afro -descendente em Sergipe num contexto
histórico de representações que enfatizam a necessidade de reconhecimento e visibilidade deste
grupo étnico-racial. Tradição africana, cultura popular brasileira, identidade, religiosidade,
representações e diferenças étnicas, historicidade, intervenções culturais e políticas são alguns dos
aspectos que podemos levantar através de sua abordagem literári a como forma de problematizar a
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participação do sergipano, mais especificamente a do afro -sergipano na vida cultural e política de seu
Estado.
É neste contexto do debate político e étnico -racial contemporâneo que analiso a atuação
direta do intelectual Severo D'Acelino em Sergipe. Destaco seu trabalho como fundamental para
pensarmos o diálogo de sua produção cultural com a de artistas e outros intelectuais da literatura
afro-brasileira. Acredito também que a diversidade do trabalho de Severo tenha impacto em todos os
setores da opinião publica, gerando polêmica com o poder hegemônico sergipano. Na efetivação de
seu discurso, ele se vale da condição e do papel de intelectual, para criar estratégias de intervenção
na política cultural e, na estrutura educacio nal, buscando uma representação do afro -descendente
mais emancipatória, sob o ponto de vista da reconstrução da história e da memória do afro -
descendente em Sergipe em consonância com as leituras da literatura contemporânea.
i Rosemere Ferreira da Silva ( roserosefr2000@yahoo.com.br) possui Graduação em Letras
Português/ Inglês pela Universidade Federal de Sergipe (1998) e Mestrado em Letras e Lingüística,
em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura, pela Universidade Federal da Bahia (2006). É
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade
Federal da Bahia (em curso) Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira
e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: afrodescendência, identidade
cultural, literatura afro-brasileira, literatura brasileira, cultura brasileira e estudos étnicos e africanos
ii LIMA, 1996.
iii SANTIAGO, 1998, p. 16
iv SOUZA, F. 2005, p. 97-98
vUtilizo o conceito de intelectual orgânico proposto por Gramsci, ou seja, aquele que se coloca a
serviço de classes ou empreendimentos para organizar interesses, disputar e obter expansão dos
espaços de poder.
vi Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), “os indicadores, elaborados
principalmente a partir dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada em
2003, estão apresentados em tabelas e gráficos, para o Brasil, grandes regiões e unidades da
federação e, para alguns aspectos, também para regiões metropolitanas. A publicação apresenta um
glossário com termos e conceitos considerados relevantes". Os percentuais de 68,6% (pardos),
27,4% (branca), 3,8% (preta) e 0,2 (amarela ou indígena) foram retirados da tabela 11.1 - População
total e sua respectiva distribuição per centual, por cor segundo as Grandes Regiões, Unidades da
Federação e Regiões Metropolitanas-2003. O percentual de pardos está sendo lido aqui como o de
afro-descendentes. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/ . Acesso em: 08 de set. de 2005.
vii Este percentual está baseado em Estudos e Pesquisas/ Nota de Estudos 02/203 - Ranking dos cem
(100) maiores municípios negros do Brasil.
Fonte: Microdados da Amostra de 10% do Censo Demográfico de 2000. Programação: Luiz Marcelo
Carvano. Disponível em: http://www.observatórioafrobrasileiro.org.br . Acesso em: 08 de set. de 2005.
viii GIL, Gilberto. Sarará Miolo, Intérprete: Gilberto Gil. Realce. Warner Music, p. 1979. Faixa 7.
Os versos da letra da música de Gilberto Gil ilustram uma definição de “sarará" que está diretam ente
relacionada com a crítica à rejeição de características que circulam socialmente como definidoras de
um padrão de beleza estética branco. O "sarará" já traz naturalmente a cor dos cabelos loura, o que
se aproxima desta construção de padronização criad a pela sociedade. Portanto, o "duro" seria
enfatizar que o "louro-duro" é a diferença que existe entre o branco louro de cabelo liso e o branco
louro de cabelo duro, diferença esta que quando assumida reforça muito mais a identidade afro -
brasileira do que uma identidade branca.
ix HALL, 2005, p. 104
x HALL, op cit, p. 108-109
xi D’ACELINO, 2002, p. 74
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xii MARTINS, 1995, p. 56-57
xiii GATES, 1992, p. 206-207
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