sábado, 19 de julho de 2008

CONCEIÇÃO A GUERREIRA DE MULUNGU EM DEBATE - CONTO DE SEVERO D'ACELINO NA ACADEMIA.




As estratégias discursivas na construção do sujeito histórico, através da literatura engajada de José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino
Rosemere Ferreira da Silva
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Letras e Lingüística da UFBA

Resumo
O artigo pretende discutir as estratégias discursivas usadas para a construção do sujeito histórico em O conto da ilha desconhecida, de Saramago, Mestre Tamoda, de Uanhenga Xitu e Negra Conceição: a guerreira de Mulungu, de Severo D’Acelino. Busca ainda destacar o engajamento literário dos intelectuais citados como forma de auto-reflexividade e de desconstrução de verdades absolutas na literatura contemporânea.

Palavras-chave: Literatura Engajada, Intelectual, Identidade.

Severo estréia sua publicação de contos na seção Contos Afro-Sergipanos do jornal: Gazeta de Sergipe, no dia 10 de março de 2004. É neste espaço que o conto: Negra Conceição: a guerreira de Mulungu ganha sua primeira divulgação. Além de contribuir para ativar uma seção cultural inédita no jornal da cidade, Severo aproveita para resgatar valores culturais relativos à cultura popular negra, até então ignorados pela cultura local.

Neste conto Severo define a personagem como:
“Conceição, a negra guerreira de Mulungu, nunca deixou de ser mulher, nunca deixou de ser negra e por diversas vezes, rejeitou a vida mansa que lhes ofereciam, foi vendida diversas vezes e nunca teve senhor, o seu maior cabedal foi sua rebeldia e sua dignidade de ser negra, mesmo de pele clara, conheceu sua mãe, mas nunca soube quem foi seu pai e se rebelava sempre, rejeitando as chamadas alforrias para manter a sua expectativa de sub-vida, pois tinha consciência que não se ajustaria, não nasceu para ser escrava o que nunca foi, nasceu guerreira e isso seria até a morte, uma morte animada na luta, a Negra, Guerreira de Mulungu”. (GAZETA DE SERGIPE, 2004, p.4).

Severo faz uma historiografia no conto da situação sócio-política e cultural da Capitania de Sergipe. O tempo mencionado evidentemente é o da escravidão. Embora João Mulungu seja citado no conto, o direcionamento da narrativa está centralizado em Conceição, o personagem feminino de tamanha importância para as fugas do grande herói negro sergipano, João Mulungu.

A narrativa de D’Acelino coloca em primeiro plano um sujeito histórico capaz de, em prol de suas próprias convicções, em um ato de rebeldia e coragem, vencer a perseguição, a caça planejada e direcionada aos negros pela força policial, com o objetivo de endossar o tráfico interprovincial, para salvar a pele de outro sujeito, no qual a comunidade negra depositava sua esperança de protesto e libertação, de uma raça oprimida pela invasão de um colonialismo fomentado pelo disparate de uma imposição cultural unilateral.

A descrição de Conceição no conto remete-nos à heroína de uma missão, somente permissível para aqueles cuja determinação fosse a razão de sua imperatividade diante dos propósitos de uma raça que se questiona, até hoje, o porquê de ter tantas metáforas usadas para justificar os negros/ afrodescendentes como racialmente subalternos.

Este conto se constitui como uma construção discursiva que contextualiza a revisitação memorial feita através da história de personagens negros. João Mulungu e Negra Conceição animam o trabalho do escritor junto à comunicabilidade de reconhecimento de uma ancestralidade articulada para não ser menosprezada ou ignorada e sim resignificada.

Uma leitura mais criteriosa do conto pode sinalizar uma possível intervenção crítica desestabilizadora dos discursos hegemônicos provocada pela necessidade de uma expressão identitária local, situada a partir da Capitania de Sergipe e localizada na Vila de Maruim.

O Brasil é marcado por um modelo social hegemônico que nega as formas de ser brasileiro. A cultura popular negra tem significados muito mais abrangente
do que os que habitualmente conhecemos, longe da formação de estereótipos, ela é plural. Entender o plural num país como o Brasil é perceber a singularidade cultural do tripé de raças aqui formado, desde o seu “achamento” até o trabalho com a cultura como algo próprio de um grupo e de troca de valores e representações.
A rebeldia de Conceição a define como um personagem disposto a enfrentar toda e qualquer imposição de um colonialismo essencializado, que subjuga a diversidade cultural e clama por uma unidade imposta pela força de quem domina os meios econômicos e políticos.

A resistência de Conceição e Mulungu para não serem capturados evidencia que esta resistência é especificamente política, no que se refere à reflexão de uma condição humana modelada na lógica da tradição e também de modelos culturais de ruptura.
Há de se deixar claro que o processo de aculturação do colonialismo português visava a desculturação dos povos colonizados. Portugal impôs seus padrões ao voltar-se obsessivamente para as conquistas ultramar, mas também sofreu transformações sociais, políticas e culturais significativas como conseqüência de seu processo de colonização. Temos que considerar que num conjunto dialético, as articulações ideológicas incorporam imposições de padrões e não refletem somente transformações unilaterais.

As tendências literárias engajadas desses intelectuais trabalham numa visão de conjunto. José Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino apresentam diferenças em seus textos a partir de uma dinâmica literária moldada por fatores histórico-sociais, os quais levam o sujeito histórico a promover uma imersão no seu universo cultural tendo como princípio a sua própria dinâmica comunicativa.

A resistência dos personagens a uma ordem hegemônica é também matéria do escritor consciente. Os personagens: o homem do povo, “Mestre” Tamoda e
Conceição falam de um lugar de enunciação onde, as diferenças que aparecem no trabalho literário individual, servem de revisão histórica das condições sócio-culturais de uma minoria não veiculada por um sistema literário nacional.
Os textos, às vezes, se aproximam em decorrência de uma consciência crítica partilhada pelos escritores, pelas semelhanças entre os processos literários que utilizam e, principalmente, por uma configuração do imaginário social que antecipa uma experiência de interação dialética com outras culturas.

Espera-se que os escritores de literatura engajada, os intelectuais da esfera pública, não falem pelas minorias, não substituam a fala dos grupos minoritários por seus discursos literários, mas que, sobretudo criem estratégias particulares e contextualizadas para através da estrutura ficcional dar voz ao outro, possibilitar que este outro, tendo sua presença e criação justificada pelo contexto ficcional, possa expressar-se a partir de suas próprias aspirações que emergem de espaços periféricos, de lugares de exclusão.

Anônimos ou não, os personagens de Saramago, Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino se apropriam de um discurso cuja tensão transposta para o texto evidencia uma manifestação ideológica através de aspirações subjetivas, não totalmente particulares, mas de certa forma coletiva.

Os intelectuais da literatura engajada em Angola e Brasil, mais precisamente Uanhenga Xitu e Severo D’Acelino promovem, através do reconhecimento de uma identidade nacional, a atualização de um momento histórico que, em debate, impulsiona o processo de desalienação cultural, quando traz à cena o caráter pluralístico da cultura do quimbundo, pela língua, e da cultura brasileira, pela resignificação da ancestralidade, tendo sempre em vista a democratização da vida social.

Já Saramago, cuja produção ficcional procura recontar a história de seu país, toma para a sua narrativa o papel reduzido dos anônimos pelos grupos hegemônicos e amplia, a partir da própria resistência do personagem, sua
forma de participação no discurso, até então, historicamente escamoteada por uma oficialidade alienadora. O que Saramago faz é reconstruir essa história, que parece escamoteada, com o exercício de uma prática literária, em que a subalternidade ganha a formulação de um discurso de “verdade” e cheio de articulação de reflexões voltadas para uma intervenção política, social e cultural.

A caligrafia de Saramago recupera a história na estória. Esse movimento de recuperação proporciona uma dinâmica ao texto, onde os supostamente vencidos estejam no centro. Os personagens de Uanhenga Xitu e Severo’Acelino por questões históricas também são levados a uma representação de ascensão revolucionária no texto, ações que se pressupunham estáveis sustentam linhas discursivas baseadas num estatuto de resistência à imposição cultural do colonialismo português.

Dessa forma, quer seja por uma recuperação historiográfica, por uma revisão lingüística ou por uma valorização às raízes ancestrais, a dialética discursiva criada por estes intelectuais seduz o leitor para as discussões em torno das interseções coletivas. Os personagens representam sujeitos históricos capazes de problematizar o entrecruzamento estória/história, um modo de refletir no tecido verbal construído, a experiência de um cotidiano social fundamental à subjetividade da existência humana, de sua pluralidade presente. De acordo com Edward Said:
Em outras palavras, o resultado dos atuais debates sobre o multiculturalismo não se afigura propriamente uma “libanização”, e se esses debates apontam um caminho para transformações políticas e mudanças na forma como se enxergam as mulheres, as minorias e os imigrantes recentes, não há por que temê-los nem tentar evitá-los.(SAID, Edward, 1995, p.28-29).

A narrativa deste projeto literário movimenta a escrita dos intelectuais para uma auto-reflexividade multicultural. Neste sentido, a narrativa não é apenas o registro, mas um instrumento que direciona o paradigma da ideologização dos discursos da autoconsciência teórica sobre a história enquanto oficialidade e a ficção como pedagogia para uma releitura do passado no presente, onde as
diferenças sejam interpretadas como parte da diversidade de configurações identitárias legitimadas por uma escrita literária pronta ao questionamento de verdades absolutas.

Referências Bibliográficas:
ABDALA JR., Benjamin. De Vôos e Ilhas: Literatura e Comunitarismos. Cotia/ SP: Ateliê Editorial, 2003.
GAZETA DE SERGIPE. Sergipe, março de 2004. Nº 13.516.

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