sexta-feira, 23 de outubro de 2009
ENTREVISTA. materia recuperada
Entrevista com presidente da Casa de Cultura Afro-Sergipana, Severo D’Acelino
21/03/2005, 13:26
Na semana em que se comemora o Dia Internacional de Combate ao Racismo, o presidente da Casa de Cultura Afro-Sergipana, Severo D’Acelino fala sobre o Projeto João Mulungu vai à Escola, que desde 1999 visita os municípios do Estado, contando a história do negro em Sergipe. Além da pesquisa que antecede as visitas e já rendeu a organização de cadernos sobre o tema, o projeto conta com uma pedagogia interativa que pretende debater com a comunidade a partir do contato cotidiano com o racismo. “Eu sempre começo a aula perguntando quem é negro. Às vezes eles ficam se olhando sem falar nada, para mim isso já é uma resposta”, explica ao enfatizar que um dos principais problemas enfrentados pelo movimento é que a maior parte da população negra não se reconhece ou não quer ser reconhecida como tal.
Por Iracema Corso
M.C. - Quem foi João Mulungu?
S. D. - João Mulungu foi uma criança, pode-se dizer, como uma dessas ‘crianças de rua’, que fugiu do engenho porque apanhava e que depois se tornou o maior líder dos quilombos daqui de Sergipe. Ele andou por todas essas vilas do Estado. Em 1876, ele foi denunciado e preso no engenho da Flor da Rosa em Laranjeiras, que hoje em dia é o terreno que divide Laranjeiras e Riachuelo e ele foi propriedade de João Pinheiro da Fraga que é parente dos Franco. (...) Quando ele fugiu, sendo perseguido pela polícia e foi lá para Porto da Folha, no Mocambo (primeiro quilombo a ser reconhecido aqui em Sergipe), ele foi traído por Severino. João Mulungu não foi enforcado, foi condenado a cinco anos de galé (trabalhava como escravo em repartições públicas) e certamente foi mandado para a Bahia para cumprir a pena. Mas não foi depois da prisão de João Mulungu que o quilombo parou, muito pelo contrário, os levantes só aumentaram. Mesmo depois de 1888, com a Lei Áurea já em voga, ainda existiam muitos quilombos porque a comunicação era muito difícil e uma notícia demorava muito a chegar. A história tem muitas lacunas e a gente sabe que existem outras versões.
M.C.- Como foi a receptividade dos estudantes com o projeto ‘João Mulungu vai à Escola’?
S. D.- Ele teve uma receptividade imediata, instantânea, natural, porque ele traz uma nova filosofia dentro da pedagogia e ações inclusivas que buscam resgatar os valores do negro, associado aos valores dos índios porque são dois grupos discriminados no Brasil e, principalmente, em Sergipe. O nosso estado tem pouca ou nenhuma referência do índio e _ como a nossa educação ainda traz muito do recalque, é muito retrógrada e não admite a mudança dos valores impostos pela Casa Grande, pela estrutura organizacional, colonialista_ nossos professores não são treinados para a inovação. Então, é um trabalho muito difícil e necessário. Apesar de Sergipe ter como maior referência nacional os pensadores sergipanos, aqui não se sabe quase nada sobre eles. Os projetos de ação afirmativa que se esboçam aqui em Sergipe são apresentados em outros estados. Um projeto de educação cultural visa exatamente resgatar a cidadania, a identidade do negro Sergipano. No caso, a Casa de Cultura, que já vem dando palestras em escolas há 25 anos.
M.C. – Como o projeto foi elaborado?
S.D. – Já dávamos palestras nas escolas, mas a formalização aconteceu na escola católica Patrocínio do São José. A irmã Helena, que na época era a diretora da escola, sugeriu que fosse estruturado um projeto para ser apresentado ao Estado. Na gestão do governador Albano Franco, o projeto passou a receber o apoio do Estado e a prestar serviço para escolas da rede pública estadual. Nós também tivemos que começar a produzir informações, buscar bibliografia, documentos e em junho começamos a produzir os cadernos pedagógicos no intuito de resgatar o processo étnico-histórico e cultural dos municípios. Nós já visitamos o Estado inteiro, produzimos cadernos contando a história de 26 municípios e estamos esperando que haja uma solução de continuidade para retomarmos o trabalho iniciado no governo passado.
Sergipe foi o primeiro Estado no país que instituiu a introdução da cultura negra na grade curricular, exigindo concurso público, curso de formação, isso tudo em 1999. Agora, com a chegada do governador João Alves, nós fizemos a primeira etapa e a segunda etapa de junho à agosto onde nós atingimos mais de 40 mil pessoas entre professores, alunos e comunidade, pois quando o projeto chega no interior ele é um projeto de educação e não um projeto do governador porque a gente abre para que toda a comunidade escolar esteja presente. Isso talvez tenha gerado muito ciúme entre os que se dizem administradores da educação porque pararam de pagar o nosso dinheiro de junho à agosto e nós acabamos paralisando as atividades.
M.C. – O projeto estava tendo o resultado esperado?
S.D. - Na medida em que o aluno se sente presente na conferência e reconhece aquilo que está sendo colocado como dele, há um interesse maior. Ele se vê inserido dentro do contexto, seu cotidiano, sua tradição. Ele percebe que a abordagem é diferente do que ele vê normalmente na escola porque nós estamos falando sobre ele e assim ele se sente participante da discussão. Acaba havendo aquela divulgação do boca-a-boca para a turma da tarde e da noite. Em Santa Luzia do Itanhi tiveram professores que participaram do seminário nos três turnos.
O projeto de educação cultural João Mulungu vai às Escolas é um projeto extremamente vitorioso. Sergipe é o único local no Brasil que existe esse tipo de projeto só que não tem o respaldo do governador do Estado. É lamentável porque a gente entende que o governador é negro, mas ele não se assume como negro, não se reconhece como negro. O governo trata a comunidade como uma coisa só. O resultado é que os negros acabam sendo tratados desigualmente, tendo em vista que existe a desigualdade racial.
(...) Então o projeto João Mulungu vai à Escola veio para ficar, mas nós temos problemas. Há 40 anos eu vinha acreditando que o governador João Alves Filho poderia ser um instrumento de articulação para a valorização do negro em Sergipe e agora me dei mal porque ele nunca fez nada pelo negro em Sergipe. O antecessor, Albano Franco fez muito mais. Ele criou a Delegacia de Crimes Raciais que o atual governo transformou no Centro de Atendimento a Grupos Vulneráveis. Agora, se acontece algum caso de discriminação, ele tem que ser resolvido nesse Centro e isso é realmente constrangedor porque um ser humano não quer ser tipificado como vulnerável.(...)
Eu estou com a minha auto-estima muito baixa em saber que o governador que é sergipano e que é negro não está preocupado com a história do negro em Sergipe. Por isso o movimento negro no Estado está tão desarticulado. O movimento negro em Sergipe não é um movimento social porque não se propõe mudança. O que nós temos são entidades negras que fazem ações isoladas para a concretização do projeto pessoal dos seus dirigentes.
M.C. – Você não avalia que o problema de não se aceitar enquanto negro também é fruto do racismo, da discriminação que pesa sobre o negro e da qual o cidadão quer fugir, dizendo que não é negro?
S. D. - Se com a cultura sergipana existe essa desvalorização_ porque é muito mais fácil você conhecer os escritores sergipanos na Alemanha do que em Sergipe_ que dirá com a questão racial. O negro, aqui em Sergipe, quando clareia um pouquinho já diz que é branco. Então, o preto é justamente aquele que é segregado pelo próprio negro. Sergipe tem 86% de negros em sua população absoluta porque a raça negra é constituída por pretos, pardos e mulatos. Mas enquanto houver essa mentalidade, só é considerado negro aquele que é preto mesmo. Meus sobrinhos e netos que clarearam, acabam virando brancos e a nossa experiência é a do recalque sob a ideologia do branqueamento.
M.C.- Além do resgate histórico junto às escolas, o projeto trabalha a questão da cultura negra, apresentando a dança afro, a capoeira ou esclarecendo preconceitos sobre o candomblé?
S. D. - Eu avalio que muitas vezes é melhor estimular que as cidades do interior apresentem seus grupos de dança, capoeira, maculelê. O resultado é uma interação muito grande. Geralmente, quando a gente consegue avisar da visita com antecedência, tem apresentação de grupos locais. O projeto quer trabalhar a questão da identidade, por isso, quando eu chego nas cidades eu falo sobre as tribos que existiram lá. Quando eles ouvem as informações sobre a caracterização dos índios, a cultura e o modo de vida eles vão começando a se identificar.
(...) A minha presença viva já é um impacto. Quando eu chego na escola com este cabelo o racismo e a discriminação já se aflora. Tem gente que se benze, tem quem diz: “Ave Maria, parece o cão”. Na hora eu finjo que não vejo, mas eu estou vendo tudo e estou percebendo tudo e utilizo isso também na minha explanação pedagógica. Quando termina a minha palestra e todo mundo aplaude eu respondo: Essa é minha vingança porque quando eu cheguei aqui todo mundo se benzeu me chamando de cão, nego, macaco e agora vocês me aplaudem de pé. Todo mundo começa a rir. Então eu acho que é essa interação que tem que ter. Você tem que pegar os elementos que a sociedade está lhe oferecendo para utilizar como instrumento pedagógico, essa colaboração espontânea. É a oportunidade de se discutir o racismo, o preconceito que acontece ali. Eu me sinto tão satisfeito, tão rejuvenescido quando eu estou em ação.
M.C.- Como é que está funcionando o disque-racismo aqui em Sergipe?
S. D. – A pessoa que sofrer discriminação racial e necessite de informações para saber que encaminhamento precisa tomar pode ligar para o 241-5628, que é o número da Casa de Cultura Afro-Descendente. Ontem eu recebi três denúncias de racismo, só que a gente não está mais dando encaminhamento para as denúncias. Nós damos a orientação, remetendo para o Ministério Público Federal ou Ministério Público Estadual. Nós explicamos que a pessoa tem que ir aos jornais denunciar o caso e que preste queixa na delegacia. Com o boletim de ocorrência e a matéria de jornal, nós orientamos o cidadão ao Ministério Público e entregue lá esse material para que a justiça possa receber a denuncia do Ministério Público. Também explicamos que é necessário procurar na Defensoria Pública e na Ordem dos Advogados um profissional para fazer a sua proteção.
Antes nós tínhamos um advogado e tudo era feito aqui. A pessoa chegava aqui, fazia a denúncia e o advogado já entrava com a ação na Justiça. É claro que a pessoa ficava muito mais satisfeita e a possibilidade de desistir de fazer a denúncia era muito menor porque quando a gente diz que é para ir à delegacia, jornal, Ministério Público, Defensoria Pública, a pessoa fica meio desanimada. Então, quem é discriminado muitas vezes tem que engolir a humilhação porque fica com vergonha de dizer que foi discriminado e nós, da Casa de Cultura Afro-Sergipana, estamos sem estrutura para dar o apoio necessário.
M.C. - Na comemoração do Dia Internacional de Combate ao Racismo tem alguma atividade que a Casa de Cultura Afro-Sergipana venha a fazer em parceria com outras entidades?
S.D. – Nós os negros aqui em Sergipe, enquanto sociedade, enquanto instituição, nós não somos solidários. Uma entidade negra, um militante negro disputa com o outro espaço de atuação. A Casa de Cultura está assim _ fundou o movimento negro em Sergipe, na Bahia e em Alagoas_ não tem solidariedade de nenhuma entidade. Eu sei que estão todas passando por dificuldades, mas para ser solidário basta fazer uma notinha no jornal, ligar para a televisão, ligar para o rádio e falar que não concorda com a sabotagem do governo com o projeto João Mulungu vai à Escola, com essa violência que está sendo feita com a Casa de Cultura Afro Sergipana. (...) As dificuldades são muitas, mas eu não desisto. Como não tenho recurso, estou reestruturando o espaço da Casa de Cultura para dar as aulas aqui mesmo e vou continuar buscando parcerias.
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